Tenho um amigo que usa como lema: “O Brasil foi feito para não dar certo”. Tendo a
dar razão a ele. A sociedade aprendeu a reivindicar, o que é saudável. Mas parece ter
faltado à aula dos deveres, das obrigações e das responsabilidades.
O constituinte de 1988 foi pródigo ao estipular os direitos. Todos eles ganharam o status
de fundamentais e sempre haverá quem os invoque e obtenha deferimento judicial. É
saudável a tutela dos direitos. Melhor seria que eles fossem objeto de observância
espontânea. A cada direito, corresponde uma obrigação e não é preciso chamar o juiz
para que ela seja cumprida.
Um dos efeitos dessa rede protetiva foi a judicialização da vida brasileira. É incrível a
quantidade de processos em trâmite por todos os foros e tribunais. Cifra inimaginável
quando o estrangeiro dela toma conhecimento. Mas há outras consequências advindas
da instauração da “República dos direitos e da hermenêutica”. Todas as interpretações
são possíveis. Quase sempre em desfavor de quem, incautamente, assume função
estatal. Hoje é uma atividade de risco aventurar-se a gerir a coisa pública.
Estruturas anacrônicas, excesso de quadros funcionais, burocracia estiolante, presunção
de má-fé, tudo contribui para que o exercente de qualquer cargo estatal seja futura
vítima a oferecer o pescoço a prêmio. Órgãos fiscalizadores se recusam a orientar, sob
argumento de que sua atribuição é o controle, não a pedagogia. A saudável inspiração
da lei de licitações obriga o Estado a contratar pelo menor preço e a favorecer os
inescrupulosos, que confiam nos aditamentos e descumprem os contratos. Vide o
número de obras inacabadas em todo o país.
Os quadros funcionais, mal remunerados, não têm a qualificação requerida para o
manejo do interesse público. Nítido o paradoxo decorrente de sofisticados esquemas de
prestação de contas entregues a pessoas despreparadas. Isso torna o acerto na satisfação
de todos os procedimentalismos verdadeira loteria.
O ordenador de despesas se torna responsável por irregularidades formais e por deslizes
praticados em locais distantes do seu posto de trabalho, uma abominável
responsabilização objetiva, contrária ao que é mais trivial e básico em ciência jurídica.
As procuradorias jurídicas recomendam abstenção do gestor, não oferecem soluções
viáveis e, quando cobradas, culminam por afirmar que “ninguém é preso por falar não”.
Premido pelas contingências, o gestor se vê obrigado a assumir riscos e a se angustiar,
pois se acena com a interrupção de prestações públicas essenciais. Avalanche sobre os
ombros, cada vez mais frágeis. Cobranças veementes, críticas que repercutem na mídia
espontânea e nenhuma sensibilidade da parte de instâncias superiores.
Têm razão os que fogem do serviço público, pois as consequências de qualquer
permanência em cargo estatal é a pletora de procedimentos no Tribunal de Contas,
questionamentos pelos quais responde pessoalmente, sem solidariedade de parte do
órgão a que emprestou a colaboração.
Sozinho, indaga-se o que o levou a tal temeridade. E conclui, melancolicamente, que
está chegando a era em que só farão parte de gestão pública os que não tiverem nada a
perder. Os ingênuos ou incautos já escasseiam, pois enxergam o que acontece com os
que acreditaram em servir ao bem comum. Não são exatamente as melhores
perspectivas para quem sonhou com um novo Brasil.
José Renato Nalini
Presidente da academia paulista de letras e docente da UNINOVE. Foi secretário de educação do Estado de São Paulo e presidente do tribunal de justiça de São Paulo (TJSP). Nalini é mestre e doutor em direito constitucional e autor de vários livros na área jurídica.