Sobre as “pedaladas fiscais”: reflexões acerca dos objetivos da contabilidade e da atuação do contador público


Profissionais da contabilidade devem esclarecer e orientar seus clientes
Carlos Alberto de Miranda Medeiros*
Sandra Maria de Carvalho Campos**



A propósito das fortes repercussões sobre o julgamento, pelo TCU, das contas de 2014 do Governo Federal, é opor tuno apresentar uma visão sobre as pedaladas fiscais e suas ligações com a contabilidade. São sempre temerárias as aná lises superficiais sobre um problema de tal magnitude. Por isso, o que pretendemos é contribuir com a discussão e pro por um aprofundamento da reflexão sobre a devida eviden ciação contábil e a atuação do contador público.

Objetivamente, as “pedaladas fiscais” são atos de gestão praticados por agente público no intuito de atingir as metas que traduzem o sucesso ou o insucesso de sua gestão. Para demonstrar o sucesso, o agente utiliza-se de qualquer meio que encontre respaldo em dispositivos presentes no arcabou ço legal e normativo aplicável ou que possa ser justificado na falta deles, ainda que esses meios resultem em desequilíbrio fiscal e financeiro e em forte prejuízo a uma gestão efetiva mente bem sucedida, à transparência e ao interesse social. Já era mais do que tempo de termos aprendido que o sucesso de uma gestão não se mede apenas em números, es pecialmente porque números não são manipuláveis impune- mente. Há exemplos de todos os tipos de “pedaladas”, todas elas, ao final, malsucedidas: as “pedaladas fiscais” da Grécia, que sofre as consequências dramáticas da conjunção de uma gestão fiscal irresponsável com demonstrativos contábeis que não evidenciavam adequadamente a realidade; “pedala- das corporativas” da Enron e, mais recentemente, da Fifa e da Volkswagen. Na gestão pública, é inconteste que o contador não tem o poder de praticar tais atos de gestão e que muito raramen te participa da decisão de praticá-los. Porém, não raro esses atos lhe são atribuídos, porque é o contador quem lhes dá publicidade por meio dos registros e relatórios contábeis, sem os quais as “pedaladas” (que resultaram, em simplória síntese, em superavaliação do ativo e subavaliação do passi- vo) não teriam sido reveladas. E aí surge uma importante questão: a contabilização do ato irregular pode ser considerada, também, irregular? Uma transação irregular será ou não contabilizada? Em que situa- ção poderia a prática contábil ser “criminalizada”: no registro de ato irregular ou na omissão do seu registro? É preciso ter clareza quanto a essas questões, pois atribuir à contabilidade a titularidade de ato ou fato irregular apenas por ter lhe dado a devida publicidade é, no dizer do saudoso mestre Lino Martins, atribuir a culpa da má notícia ao mensageiro. É premente a reflexão sobre a postura do profissional da contabilidade perante as pedaladas fiscais ou irregularidades no exercício profissional, pois temos que admitir que nem sempre será verdadeira a sua total isenção. A cumplicidade do profissional da contabilidade, seja por ação, seja por omissão, implica em responsabilização solidária, nos termos das leis e normas vigentes, mas, não menos grave que isso, deturpa o objetivo da Contabilidade Aplicada ao Setor Público: “fornecer aos usuários informa ções sobre os resultados alcançados e os aspectos de nature za orçamentária, econômica, financeira e física do patrimô nio da entidade do setor público e suas mutações, em apoio ao processo de tomada de decisão; a adequada prestação de contas; e o necessário suporte para a instrumentalização do controle social.” (NBC T 16.1).

Quando o contador participa da tomada de decisão em relação às “pedaladas”, ele se torna inquestionavelmente agente ativo; quando não expressa sua discordância, não se exime de sua condição de agente passivo, omisso quanto à sua responsabilidade técnica e ao Código de Ética da profis são contábil. Aos titulares das contadorias públicas que discordem de práticas que comprometam a devida evidenciação contábil ou fiscal, cabe a entrega do cargo ou a elaboração de notas explicativas adequadas e circunstanciadas. A primeira opção – a entrega do cargo – não trará necessariamente benefício para o controle social, pois o contador discordante será ime diatamente substituído por outro que, sabe-se lá por quais motivos, obedecerá às regras do jogo. Quanto à opção das notas explicativas, somente com um elevado grau de auto- nomia e independência, poderá o contador adotá-las. Para tanto, é necessário que haja maior valorização da atuação das contadorias, com a obrigatória condição de estabilidade, garantia de carreira e regularidade profissional dos servido res que as assumem. Nesse contexto, sobressai a imperdível oportunidade e imperiosa necessidade de aprofundamento da reflexão sobre a função do contador público, bem como de um posiciona mento consistente e firme do CFC, contemplando, de início, a obrigatoriedade e o fortalecimento das carreiras públicas de contadores. Discussões sobre a ética, os direitos, os de veres e as salvaguardas do exercício do contador do setor público seriam uma pauta pertinente no próximo Fórum Nacional de Gestão e Contabilidade Públicas (evento bianual do CFC). À medida que a sociedade passar a reconhecer a Con tabilidade Aplicada ao Setor Público como instrumento im prescindível do controle social, a função de representação do contador público se sobressairá à atual percepção geral de apenas agente de apoio da gestão. Todavia, somente a autonomia e a independência do profissional contábil serão capazes de torná-lo agente efetivo da isenção e da transpa rência dos dados divulgados.

* Carlos Alberto de Miranda Medeiros: Contador, auditor fiscal do Tesouro Estadual, contador geral do Estado de Pernambuco, conselheiro do CRCPE.
** Sandra Maria de Carvalho Campos: Contadora, presidente da Associação Brasileira de Contadores Públicos (ABCP).

Detalhes


  • Fonte: Jornal do CRCMG
  • Mês/Ano: Fev. 2016
  • Autores: Carlos e Sandra

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